O entrudo que deu origem
ao nosso Carnaval precedia a Quaresma: época de intensa atividade
religiosa
Você sabia que o
período da Quaresma, em vez de recolhimento, jejum e reflexão espiritual, já foi
tempo de intensas festividades e de comilança à vontade no Brasil? E que o ato
de malhar o Judas remonta ao período colonial?
Essas e outras
curiosidades podem ser lidas neste interessante artigo sobre a celebração da
Páscoa no país. Com muitas informações históricas, o texto remonta ao período do
Brasil Colônia, tempo em que as atividades da Quaresma agitavam a vida
social.
Com uma linguagem
acessível, o presente artigo é uma boa dica de leitura para se conhecer um pouco
mais sobre as celebrações da Semana Santa no Brasil. Portanto, boa leitura e
FELIZ PÁSCOA!!!
Hugo
Freitas
PÁSCOA, TEMPO DE
FESTA
Por Georgina
Santos
Professora de
História da Universidade Federal Fluminense (UFF)
No Brasil, o
carnaval custa a terminar. Arrasta multidões para as ruas de Norte a Sul,
avançando sem pudores sobre o limite determinado pela quarta-feira de Cinzas. A
atração exercida pelos folguedos vem de longe e deu o que fazer ao clero e às
autoridades municipais ainda nos primeiros tempos da colonização.
Entre 1604 e 1691,
uma série de alvarás e posturas tentou conter os abusos praticados durante o
entrudo, ancestral do nosso carnaval. Com a intenção de afastar os colonos das
batalhas recreativas com baldes d’água, ovos, laranjinhas e limões de cheiro, os
jesuítas introduziram, em 1616, a adoração de quarenta horas no decorrer do
entrudo – como haviam feito em Portugal uma década antes, pelo mesmo motivo. Ao
longo dos três dias de folia, o Santíssimo Sacramento ficava exposto dia e noite
num altar iluminado pela chama de vinte velas. Mas o empenho dos padres em
antecipar o clima da Quaresma e destronar o entrudo foi insuficiente, e a
iniciativa caiu no esquecimento.
Passado o tempo de
excessos, enfim a Igreja poderia fazer valer suas orientações. Afinal, os
quarenta dias que separam o carnaval da Páscoa eram considerados, desde o século
VII, um período preparatório dedicado ao jejum, às privações voluntárias e às
mortificações capazes de aproximar os fiéis do sofrimento vivenciado por
Cristo.
Mas não era bem
assim que funcionava no Brasil. Ao longo da Quaresma, uma série de eventos
religiosos levava a população a se deslocar permanentemente entre missas e
procissões, agitando a vida social a tal ponto que as idéias de contrição e
recolhimento evaporavam.
Parte desse
desvirtuamento se explica pela própria natureza de nossa colonização. Foi lenta
a instalação dos bispados em todo o território, e era pequeno o número de
clérigos capazes de orientar a população. O resultado foi, no geral, uma
formação católica bastante superficial. Não eram incomuns atos de franca
zombaria e desrespeito às figuras sagradas. Thomas Luis Teixeira, ex-alferes da
infantaria e morador de Belém, foi denunciado ao Santo Ofício no Estado do
Grão-Pará, em 1773, por desacato à imagem de Cristo durante uma procissão da
Quaresma. Thomas teria lançado com força, do sobrado onde morava, um vaso “de
imundícies fétidas, escarosas” sobre o andor que carregava o Senhor Crucificado.
O impacto da pancada foi tamanho que espatifou a imagem e cobriu de excrementos
os participantes do cortejo.
"Um viajante francês considerou falso o espetáculo
da autoflagelação:
muitos dos participantes se mortificavam
diante das donzelas
para despertar compaixão"
Missa de celebração da
Páscoa: o domingo marcava o fim da privação das procissões características da
Quaresma
E nem é o caso de se
culpar somente os colonos por sua fé pouco ortodoxa. Em Portugal, na mesma
época, a Quaresma estava longe de ser um período de abstinência e meditação.
Havia procissões todas as sextas-feiras, e o recomendado jejum era facilmente
substituído por doações caridosas às obras de alguma paróquia. Assim, podia-se
comer à vontade, sem remorso. Toda procissão virava pretexto para reuniões,
bailes familiares e encenações cômicas regados a chás e bolos. Até os monges se
permitiam substituir a manteiga e o açúcar do arroz-doce por leite de
amêndoas.
Na Colônia, como em
Portugal, o início da Quaresma era marcado pela Procissão das Cinzas, realizada
na quarta-feira após o carnaval, sempre por iniciativa da Ordem Terceira de São
Francisco. Instituído no Rio de Janeiro, em Salvador e em Olinda no século XVII,
o cortejo passou a integrar o calendário das festas religiosas do Recife, da
Paraíba, de São Luís e de Vila Rica (Ouro Preto) somente no século seguinte. No
Rio, o evento aconteceu pela primeira vez em 1647 e, desde então, tornou-se o
mais espetaculoso da cidade.
Anjos, virgens,
confrades enfeitados, devotos com tochas acesas, clérigos e guardas militares
desfilavam acompanhados de vinte andores adornados com luxo e riqueza. Após as
salvas de mosquetaria, a procissão descia a Ladeira de Santo Antônio,
atravessava o Largo da Carioca e percorria as principais ruas do Centro,
detendo-se nas várias igrejas do percurso. No fim, o préstito retornava ao Morro
de Santo Antônio, onde a irmandade distribuía amêndoas e confeitos às crianças
que haviam figurado como anjos no cortejo.
O evento das Cinzas
também ficou conhecido como Procissão da Penitência. Uma referência explícita ao
exército de flagelantes que, para purgar seus pecados, lanhavam os ombros com
navalhas, bolas de cera aramadas ou cacos de vidro à saída do préstito. A cena
causava comoção entre os católicos praticantes e os espectadores mais sensíveis,
mas provocou estranheza no viajante francês Le Gentil de La Barbinais, que
considerou o espetáculo extravagante e falso, ao visitar Salvador em 1717.
Sobretudo depois de constatar que muitos participantes se mortificavam com
violência diante das donzelas para despertar compaixão.
Semana Santa em
Olinda e Recife
Em Olinda e no
Recife, o cortejo também atraía multidões. Na capital pernambucana, a procissão
era aberta pelo “papa-angu”, figura que se vestia com uma longa túnica preta,
mantendo a cabeça coberta por um capuz com dois orifícios na altura dos olhos, e
munido de um comprido relho, destinado a fustigar aqueles que obstruíam sua
passagem. Conhecido noutras paragens como “farricoco”, o tipo participava de
outros cortejos, como o do Senhor dos Passos, criado para recordar o drama de
Jesus Cristo até o calvário. A procissão assumia a forma de um teatro volante e
detinha-se em vários pontos para encenar os episódios mais marcantes da Paixão.
Em Portugal, acreditava-se que aqueles que seguissem por sete anos a fio a
procissão dos Passos teriam a garantia de não morrer em pecado
mortal.
O clímax das
cerimônias religiosas ocorria na Semana Santa, com as procissões de Fogaréus, na
quinta-feira de Endoenças, e do Senhor Morto, na sexta-feira da Paixão.
Organizada pela Santa Casa da Misericórdia, a de Endoenças recordava a Última
Ceia e não exibia andores nem imagens de santos ou da Virgem, apenas um painel
com o Cristo coroado de espinhos. Duas longas filas de homens vestidos com
casacões negros de capuz iluminavam o trajeto com uma espécie de candeeiro preso
a uma vara de pau, daí o nome Fogaréus. Uma legião de flagelantes catalisava as
atenções: nus da cintura para cima e armados de chicotes, açoitavam a si mesmos
insuflados pelos farricocos.
No dia seguinte,
sexta-feira da Paixão, tinha lugar a procissão do Senhor Morto ou do Enterro,
realizada pela Ordem Terceira do Carmo. No Rio de Janeiro, o evento teve início
em 1658 com toda pompa e circunstância: aberto pela guarda militar, conduzia uma
grande cruz alçada com o Santo Sudário trançado em seus braços, escoltado por
tocheiros. Na seqüência, crianças ricamente vestidas de anjos carregavam os
emblemas da Paixão e abriam caminho para os irmãos do Carmo. Atrás, sob um
luxuoso pálio cercado de círios com tochas de cera roxa, avistava-se um esquife
de prata com o Senhor Morto, parcialmente coberto por um manto violeta de
franjas douradas. O ataúde se deslocava sobre o ombro de clérigos, “convidados
mediante pagamento de compensadora propina”.
Ávidas por
demonstrar sua sincera devoção e as qualidades morais de seus membros, as
famílias mais notáveis acompanhavam o féretro representando personagens da
Paixão: Madalena, São João Evangelista, Verônica, José de Arimatéia e Nicodemos.
Em seguida vinham o Anjo Cantor – representado por uma jovem escolhida entre as
famílias mais abastadas –, a guarda romana e a imagem de Nossa Senhora das
Dores, ladeada por uma guarda de honra e trajada com um manto de veludo bordado
a ouro, jóias valiosas e um resplendor de ouro sobre a coroa. Encerrando o
desfile, a banda, com seus instrumentos adornados por laços de crepe, executava
as marchas fúnebres que embalavam o cortejo.
O espetáculo da
procissão do Senhor Morto era disputadíssimo e atraía praticamente toda a
população da cidade, movimentando o comércio ambulante. Nas calçadas e no vão
das portas, negras vendiam bijus, pamonhas, cuscuz e arroz-doce em seus
tabuleiros, faturando para si e para as sinhás. A mesma oportunidade tinham os
aguadeiros e os vendedores de aluá (espécie de suco com frutas ou farinha). Os
privilegiados, que moravam no itinerário da procissão, ornavam suas janelas com
colchas de damasco e recebiam, com gosto ou a contragosto, parentes e amigos
para assistir ao desfile.
A malhação de Judas é um
ritual desde os tempos coloniais. No Sábado de Aleluia, as pessoas de
comportamento inadequado são representadas pelo apóstolo
traidor
Sábado de
Aleluia
No sábado de
Aleluia, era a vez de um rito vibrante e barulhento: a malhação do Judas.
Representado por bonecos de palha ou de pano, preso em postes de iluminação
pública ou em galhos de árvores (numa alusão ao seu suicídio), o apóstolo
traidor era queimado pelos populares aos gritos, logo depois que os sinos
anunciavam a aleluia litúrgica. Personificação das forças do mal, a boneco do
Judas é, segundo alguns, um resquício de antigos ritos agrários europeus. A
destruição de sua imagem representava para as comunidades camponesas a
expurgação do mal e a certeza de uma boa colheita. Embora revestida de
significado cristão, a prática adquiriu nova função: limitar as ações
consideradas impróprias à comunidade que malha o Judas – em seu corpo
desengonçado coloca-se o nome da vizinha fofoqueira, do marido adúltero, do
comerciante ganancioso... O ato depura as ações e os pensamentos nocivos de cada
um dos participantes, preparando-os para a renovação anunciada pelo domingo de
Páscoa.
Depois de longos
quarenta dias de “privação”, é hora enfim de festejar: que venham os presentes e
os ovos de chocolate!
Fonte: Revista de
História
Saiba
Mais - Bibliografia:
CAMPOS, João da
Silva. Procissões tradicionais da Bahia. Salvador: Conselho Estadual de Cultura,
2001. 2ª edição.
CASCUDO, Luís da
Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Editora Itatiaia, 1984.
COARACY, Vivaldo.
Memórias da cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo.
MATHIEU-ROSAY, Jean.
Dicionário do Cristianismo. Rio de Janeiro: Ediouro,
1992.
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