quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Judaísmo e cristianismo: reflexões históricas

Por: Sergio Feldman

Jesus era judeu. Nasceu em Belém (Beit Lechem) na Judéia (Iehudá), de pai e mãe judeus, viveu entre a Judéia e a Galiléia (Galil). Cresceu em Nazaré (Natzeret) e pregou na Galiléia, no lago Tiberíades (Kineret ou mar da Galiléia) e no vale do Rio Jordão (Iarden). Viveu e pensou como um judeu de sua época: falava frases retiradas do livro de Isaías e do Pentateuco (Torá). Algumas de sua celebres frases, podem ser repensadas. Costuma-se atribuir a célebre frase, “Amarás ao próximo como a ti mesmo” a Jesus. Alguns judeus a atribuem a Hilel, sábio renomado do período do Segundo Templo, mas anterior a Jesus. Porém, há um versículo (passuk) no código da Santidade (Levítico ou Vaikrá, cap. 19, v. 18) que cita esta famosa frase, muitos séculos antes de Hilel e Jesus. Por que foi atribuída a Jesus? Por que sintetiza os ideais e as idéias principais da religião judaica: amar a Deus e amar ao próximo. Jesus praticava e acreditava nestes valores, pois era judeu.
Já repararam que todas as pessoas neste país celebram a circuncisão (Brit Milá) de Jesus, sem se dar conta que nasceu no dia 25 de dezembro e foi circuncidado no dia 1º de janeiro, exatamente oito dias, como manda a tradição judaica!!! Nada mais nada menos do que a antiga denominação da festa: circuncisão universal. Depois foi renomeada como confraternização universal. Se o Judaísmo tem como pilares a circuncisão, o estudo da Lei ou Pentateuco (Torá), e a prática dos preceitos (mitzvot), o que nos diz disso Jesus? Seria contra a Torá? E os argumentos e pontos de vista dos profetas hebreus tão importantes no Judaísmo, teriam apoio ou seriam negados por Jesus? O trecho do apóstolo Mateus traz luz a esta questão (cap. 5, v. 17). Diz: “Não pensem que vim para destruir a Lei e os Profetas; não vim para destruir, mas sim para fazê-los cumprir”. Como pode ser percebido, Jesus não nega a Torá e os Profetas, mas defendê-os. Tratava-se de um judeu cumpridor das miztvot e das práticas judaicas. Nunca se declarou contra e nem se opôs à sua prática.
A última ceia que foi a motivação da “Ceia do Senhor” e posteriormente da eucaristia (e da hóstia) era uma ceia (seder) da Páscoa Judaica (Pessach). A origem da hóstia é o pão ázimo (matzá). Eu conheci um padre, muito amigo dos judeus, que sempre vinha comprar caixas de matzot na sinagoga, para usá-las nas missas, num dos locais aonde trabalhei, aqui no Brasil. Dizia que se tratava da verdadeira hóstia, pois se assemelhava àquela de Jesus.
Jesus guardava o Sábado (Shabat), freqüentava o Templo (Beit Hamikdash), celebrava as festas do calendário judaico (chaguim), e compartilhava seu saber e sua bondade com seus irmãos oprimidos. E quem os oprimia? Quem seriam os adversários de Jesus? Há uma diversidade de opiniões e de interpretações. Permitam-me
direcionar a reflexão, para uma destas vertentes interpretativas. O maior inimigo dos judeus neste período era o Império Romano, que ocupara toda a Ásia Ocidental e se tornara a potência dominante. Para dominar, adotava políticas de ocupação diferentes em cada região, mas geralmente buscava alianças de grupos determinados, para neutralizar oposições locais. Quem seriam os aliados de Roma, na Judéia? Um destes era Herodes, o idumeu (edomita), cuja família fora convertida ao Judaísmo. Político habilidoso e grande construtor, porém dotado de uma paranóia que o levava a ver inimigos em todos os lugares. Apoiava os romanos por achar que não havia chances de sobreviver senão apoiando o domínio romano. Havia grupos que entendiam isto, mesmo não gostando dos romanos. Um destes grupos eram os saduceus (tzedukim). Tinham sua ideologia centrada nos rituais de sacrifícios no Templo. Eram, na sua maioria, membros da classe dominante: nobres, parentes da família real, descendentes do clã sacerdotal (cohanim), grandes comerciantes e latifundiários. Não vendo como sobreviver diante do Império,optaram por aceitá-lo e submeter-se ao mesmo.
Na oposição ao Império temos diversas posições. Alguns eram moderados e não aceitando, optaram por não se revoltar de armas na mão, por não ver chances de vencer. Um destes grupos eram os fariseus (prushim), que optaram pela Lei, seu estudo e sua prática, mais do que o ritualismo do Templo que servia para fortalecer os interesses dos saduceus. Opunham-se criticando e acreditando que um dia Deus enviaria o seu Ungido ou Messias, para libertar seu povo, através de uma nova era. Vencendo os romanos,estabeleceria o reino de Deus na Terra. Um tempo messiânico, sem guerras e sem injustiça social, sem violência e sem opressão ao gênero humano. Os cristãos seriam um grupo dissidente, dentro do Judaísmo, que acreditou que o Messias já viera e que Jesus, seria o ungido enviado por Deus. Eram judeus e sonhavam com um ideal judaico. Outros grupos messiânicos surgiram neste período. Tratava-se de uma era de profunda religiosidade, de uma enorme expectativa messiânica. Não apoiavam o domínio imperial, mas trataram de não se chocar com o poder de Roma. Diziam: “Daí a César o que é de César, e daí a Deus o que é de Deus”.
Isso pode dar espaço a algumas leituras e interpretações: aceitar Roma até a hora que Deus derrubasse o Império. Não criticar abertamente Roma, mas entender que os impérios são passageiros e acabam caindo um dia. Só Deus é Eterno. Uma maneira de pensar, muito judaica. Os primitivos cristãos não eram simpatizantes do Império e eram críticos dos saduceus. Então quem matou Jesus? Sem dúvida os romanos, já que foi crucificado (pena de morte romana) e não apedrejado (pena de morte judaica). O tribunal judaico não tinha permissão romana para deliberar sobre pena de morte. Isso competia a Roma: só inimigos de Roma podiam ser condenados à morte. A participação e o apoio dos saduceus é visível: mas não houve um apoio generalizado do povo judeu que vivia na Judéia, neste período. Jesus não representava uma ameaça aos fariseus; no máximo uma voz crítica e discordante como muitas outras. Aos saduceus e a Roma, Jesus oferecia uma severa crítica: por sinal, bastante inserida nas palavras de Isaías e outros profetas que lhe serviam de inspiração. Estes poderiam estar interessados em puni-lo e condená-lo a morte.
Roma continuou a perseguir os cristãos por mais de duzentos e cinqüenta anos. Foram inúmeras perseguições, mas computamos cerca de dez grandes perseguições aos cristãos. Uma média de uma grande perseguição a cada 25 anos. O primeiro imperador que os perseguiu foi Nero já nos anos sessenta do primeiro século. Os cristãos foram jogados aos leões no Circo Romano. Isso prosseguiu até o Imperador Diocleciano, próximo ao ano 300. O ódio e a perseguição aos cristãos era uma constante: só cessou quando o Imperador Constantino fez a opção de proteger e tolerar a religião cristã por razões estratégicas. O cristianismo passa então de religião oprimida e perseguida, a tolerada. Não demora a se tornar religião protegida e por fim religião dominante e opressora. E passa a perseguir os cristãos dissidentes (denominados hereges), e a restringir os direitos judaicos no Baixo Império.
E como o Cristianismo se separou do Judaísmo? Originalmente se tratava de uma seita judaica que acreditava que o Messias já viera e era Jesus. Após sua morte os apóstolos saíram a pregar sua nova fé e seus valores e ideais a outros judeus. Pregavam nas sinagogas da Síria, Ásia Menor, Egito e Grécia. Eram judeus pregando a seus irmãos. Contudo havia semi-prosélitos ou metuentes, que freqüentavam as sinagogas. Eram não-judeus atraídos pelo judaísmo e que não se tornavam judeus por causa de certas exigências. A conversão ao Judaísmo exigia certas atitudes: o prosélito devia celebrar a circuncisão, estudar a Lei (Torá) e praticar os preceitos. Diante disso alguns dos apóstolos pensaram em evangelizá-los: convertê-los à nova seita judaico-cristã. Mas a dificuldade e as exigências deveriam ser superadas. Um concílio reunido em Jerusalém em meados do primeiro século abriu a porta aos não-judeus, retirando as exigências de Circuncisão, Torá e preceitos e colocando em seu lugar o batismo e a fé em Jesus como Salvador. O mentor desta mudança foi Paulo de Tarso. Neste momento se iniciou a separação dos judeus e dos cristãos. Não pode haver Judaísmo rabínico sem circuncisão, Torá e preceitos. O distanciamento aumentou quando os cristãos optaram por não apoiar a revolta contra Roma (66-70 d.C.). Deste momento em diante se tornam inimigos e a reaproximação só acontece após quase 2 mil anos, com o Concílio Vaticano II convocado pelo Papa João XXIII.
Com a reviravolta de Constantino e a aliança do Império com a Igreja, ambos trataram de esquecer dois séculos e meio de perseguições e de confronto. Roma deixa de ser a grande inimiga e passa a ser aliada.
Os judeus passam a ser os concorrentes da herança da Revelação da Lei e da herança do Pacto de Deus. Assim sendo, para existir, a Cristandade teve de persegui-los, humilhá-los e sempre provar que o novo pacto havia substituído o pacto de Abraão, Isaac, Jacob e Moisés. Por séculos a Igreja irá construir uma ideologia, na qual a culpa e o erro judaico teriam um papel central. Não exterminar os judeus, mas provar sua culpa (mesmo que de maneira forjada) e seu erro ao não aceitar Cristo. E acreditar que o retorno de Jesus só se daria, se e quando os judeus se convertessem, pelo menos parcialmente ao Cristianismo.
Isso deu início a séculos de perseguições, confrontos teológicos e preconceito antijudaico, em nome de Jesus.
Jesus que era um judeu, deixou de “sê-lo”. “Esqueceram-se” de suas raízes e de suas origens. Seu povo passou a ser o povo de Judas, o traidor. O povo de Jesus foi exorcizado e demonizado por séculos: os judeus foram comparados ao demônio e considerados filhos do Mal.
Este artigo é dedicado a alguns de meus amigos que ao final do debate de Iom Haatzmaut (dia da Independência de Israel) me solicitaram uma continuidade do tema e um fundamento para os temas levantados pelo debate.
*Sergio Feldman é professor adjunto de História Antiga do Curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná e doutorando em História pela UFPR.

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