terça-feira, 26 de março de 2013


Cultura da negligência

MARCIA TIBURI
No famoso conto “O veredicto”, de Franz Kafka, o pai afirma ao filho após uma briga cheia das mais estranhas acusações: “Você está condenado à morte por afogamento”. O filho se dirige à ponte e se atira à água, mostrando que é impossível superar a sentença paterna. O pai e a sentença são metáfora da Lei, em si mesma inescapável. Não há para onde fugir quando se é condenado à morte.
A sentença kafkiana pode ser adaptada às circunstâncias históricas e sociais do Brasil atual: “você está condenado à morte por negligência”.
O clichê de que o Brasil é o país do “jeitinho” e, mais recentemente, da “gambiarra” acoberta o fato infinitamente mais perturbador da “negligência” elevada a Razão de Estado. A teoria da Razão de Estado se refere aos usos e abusos que governantes fazem da Lei em nome da “segurança” do Estado. Ocorre que, em nosso país, a corrupção tornou-se essa espécie de lei, a maior de todas, porque todos (políticos e cidadãos comuns) se fazem soberanos para praticá-la. No mesmo país, o Estado foi reduzido a algo como um “prostíbulo”, um espaço em que a lei é a da exceção, ou do “fora-da-lei” legalizado.
Neste quadro geral, persiste, no entanto, a “cultura” como o modo de vida que desenvolvemos e repetimos diariamente enquanto somos uma sociedade. Certamente poderíamos questionar se ainda nos autor representamos como “sociedade”, mas não há espaço neste artigo para isso. Já quando falamos de “país” não estamos meramente generalizando, mas referindo-nos às condições da cultura partilhada por todos, cuja complexidade da conta a ser paga o será por todos e cada um.
Negligência e catástrofe
É neste cenário que é preciso introduzir a triste questão da negligência como característica da cultura contemporânea brasileira. Em seu significado essencial, ser negligente significa não saber ler. Descuido e desatenção derivam de que, na origem, quem não sabe ler não poderá ler justamente a Lei que se dá a conhecer aos cidadãos sempre por escrito. Alegar desconhecimento da lei é, portanto, desconhecer que sua implacabilidade pressupõe o saber acerca de si. Diante da Lei ninguém é analfabeto.
A negligência é a forma de ser do tonto. Nova conduta autorizada a ocupar a instância simbólica da Lei. Em nível de cultura, é como se estivéssemos todos autorizados à negligência, a não saber ler. Em resumo, a fazermos nos de bobos não entendendo como as coisas deveriam ser feitas para o bem de todos.
Ao mesmo tempo, em situações de catástrofe, a cultura da negligência espera que haja punidos individualmente. Se a Razão de Estado está em cena sustentando o Estado, nada melhor que haver um único culpado em situações de catástrofe. Se lembrarmos de crimes como o assassinato de Eloá por Lindemberg, da tragédia do Realengo e, por fim, o caso do da boate Kiss de Santa Maria transformada em campo de extermínio em janeiro deste ano, veremos que os poderes instaurados em torno do Estado se esforçam por acusar um indivíduo – ele mesmo culpado, é verdade, mas não o único culpado, não a origem de todo o mal que salva o Estado – e instituições em geral, como, por exemplo, a mídia, em sua responsabilidade com a sociedade. Na cultura da negligência não há esmero em “ler” melhor o livro da sociedade que ajudamos a escrever todos os dias.
Seria fácil repetir o clichê de que “a culpa é do governo”, mas o clichê acobertaria o fato político mais profundo dos interesses individuais da classe governamental contra o povo. O fato bio político de que estamos todos condenados à morte, seja por falta de políticas para a educação, a saúde, o trabalho, é mais do que evidente. Como dizia Kafka no texto da Colônia penal, não é preciso conhecer a sentença a qual se é condenado porque ela será inscrita na própria pele. O analfabetismo político é a grande boca que pronuncia essa sentença.
marciatiburi@revistacult.com.br

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